Finale
30.08.2023POR Tiago Jerónimo

Luna Fest 2023 – Uma pedrada no Mondego

Como não poderia deixar de ser, a Rádio Universidade de Coimbra esteve presente no primeiro Luna Fest que decorreu entre 16 e 20 de Agosto de 2023 na Praça da Canção. Uma verdadeira pedrada no Mondego, numa cidade mais marcada por eventos de índole académica desta envergadura e formato.

Como em tudo na vida, poderia correr bem ou mal. Tendo em conta a parca experiência da equipa na organização de eventos desta envergadura, os cancelamentos dos concertos de Devo e The Damned, e um cartaz com muita qualidade mas sem grupos muito comerciais/mainstream, terá sido legítimo pensar que até teria mais para correr com sobressaltos do que sem eles. Mas não foi assim, muito longe disso… Como não poderia deixar de ser, a Rádio Universidade de Coimbra esteve presente no primeiro Luna Fest que decorreu entre 16 e 20 de Agosto de 2023 na Praça da Canção. Uma verdadeira pedrada no Mondego, numa cidade mais marcada por eventos de índole académica desta envergadura e formato.

1.º dia

Com o seu recentíssimo álbum de estreia «New Age Paranoia», DSM IV, o grupo de Guy McKnight, ex-Matchbox B-Line Disaster, abriu o festival de forma surpreendente. Transportaram para palco uma postura teatral alinhada com uma sonoridade Pop assombrada, até doentia, de base eletrónica, algo em linha com o olhar maioritariamente cínico com que olham para a cultura de massas. Mais público devia ter testemunhado o momento mais bizarro do festival.

DSM IV

Fotografia: Nuno Ávila

Seguidamente, subiu ao palco a banda londrina The Speedways com um concerto competente, representante duma vertente que esteve bem presente no Luna Fest, o Pop/Power Rock/Punk.

O mítico projeto alemão Deutsch Amerikanische Freundschaft (D.A.F.) era uma das grandes expectativas do festival e deu aos presentes tudo o que dele se esperava. Forjados no caldo Synth/Industrial Punk, ou se quiserem EBM, da viragem da década de 1970 para 80, com primeiro registo datado de 1979, D.A.F. é agora Robert Görl na voz acompanhado ao vivo por Sylvie Marks no computador, DJ de Berlim, num formato necessariamente diferente sem o encanto de uma bateria típica tocada em modo monolítico e aparentemente “automático”. Com a sonoridade de sempre, tocaram temas do seu excelente último álbum «Nur Noch Einer», de 2021, o primeiro sem o falecido Gabi Delgado, a quem foi dedicado tal como todo o concerto, devidamente combinados com vários clássicos, onde não poderia faltar o eterno «Der Mussolini» a finalizar, claro. Som maquinal e distorcido, incessantemente brutal.

Deutsch Amerikanische Freundschaft

Fotografia: Tiago Jerónimo

Grupo da Irlanda do Norte formado em 1974, veteranos do Pop Rock/Punk, eternos adorados de John Peel principalmente pelo seu famosíssimo single «Teenage Kicks», The Undertones deram um concerto repleto de clássicos e cheio de energia, momento de comunhão com a audiência, especialmente a que atravessou a juventude durante a década de 1980 e conhece os seus temas mais famosos como as palmas das mãos.

John Cale & Band foi claramente um dos pontos mais altos do festival. Ouviu-se que o homem está velho, ou que poderia aparecer de cadeira de rodas… Pensem três vezes. Um músico não se mede pela idade, muito menos John Cale, figura de proa na História do Rock e suas variantes. Blues Rock atípico, minimalista, progressivo, enraizado na década de 1960 e 70. Riffs rasgados, cheios de groove e eletricidade na melhor tradição do Heavy Blues. Um abanar de cabeça lento como que em transe, ao som de um minimalismo/repetição típico de Cale, que nos habituámos a ouvir através de Velvet Underground, grupo mais famoso em que tomou parte e do qual interpretou uma excelente versão de «I’m Waiting for the Man». Excelentes visuais cartunescos. Memorável.

John Cale and Band

Fotografia: Tiago Jerónimo

2.º dia

Um dos concertos mais eletrizantes de “bandas de abertura” deu início ao segundo dia do Luna Fest. A banda valenciana Finale foi intérprete de um Punk crú de alta rotação, algures entre o Hardcore e Anarcho Punk, com a atitude irrepreensível de um vocalista que tentou fazer “palco” de vários locais fora do palco: no fosso, no meio da audiência, em cima das grades, das colunas, enfim… Foi de virar do avesso!

Finale

Fotografia: Tiago Jerónimo

Seguiu-se outro grande concerto de “bandas de abertura”. Oh! Gunquit, grupo de Londres cujo som se situa entre o Garage Rock e o Surf/Thrash Rock, com uma aparência exótica e aquela postura provocadora que transforma o palco numa área em que qualquer coisa pode acontecer, combinam um formato típico de Rock com dois sopros, saxofone e trompete. Soa bem logo à partida. Voavam bananas e pandeiretas. A vocalista de chicote de mão a berrar roucamente. Por esta altura, a audiência ainda não era muita mas, tal como os que estavam em cima do palco, já estava em brasa.

Oh! Gunquit

Fotografia: Tiago Jerónimo

The Hickoids de Austin, trouxeram ao festival o seu cruzamento elétrico entre o Country e o Garage Punk, num concerto enérgico e competente, que manteve o público ligado à corrente. Mais uma banda com muitos anos de estrada, ligada à conhecida Elevator Music, editora norte-americana que publicou várias bandas Rock portuguesas em solo ianque.

Um dos preferidos do público, o concerto do grupo espanhol La Élite, de Lleida na Catalunha, foi simplesmente frenético. Duo de Synth Punk/Pop, voz e sintetizador, que assume a sua falta de meios e amadorismo como uma das suas forças motrizes, levou ao rubro os muitos que já se aglomeravam na Praça da Canção. Um concerto sem piedade, sempre a partir, da segunda banda espanhola do dia e do festival. Tal como a primeira, acompanhada por uma notória audiência conterrânea que cruzou a fronteira Ibérica para este Luna Fest.

La Élite

Fotografia: Nuno Ávila

Um dos nomes mais sonantes do cartaz, Black Lips de Atlanta, grupo de Garage/Psych Punk formado em 1999, encheu o palco com um excelente concerto que começou calmo mas rapidamente levantou voo e acabou apoteótico. Uma daquelas bandas que ao vivo parece outro animal, tal a loucura que conseguiu transmitir ao público que por esta altura já só dançava e saltava sem parar. Do melhor que se ouviu e viu neste festival.

A finalizar o dia, uma das bandas mais influentes e famosas que saiu da explosão Punk Rock de final da década de 1970: Buzzcocks. Com um único elemento da formação original, Steve Diggle agora na guitarra e voz, o grupo tocou vários hits para gáudio dos fãs da banda e do seu Pop/Power Punk. Um concerto revivalista, também de uma certa atitude cada vez mais ausente dos palcos, especialmente quando Diggle decidiu que a hora marcada para o final ainda não era altura de terminar, e reclamou que metade do grupo voltasse para palco para esgalhar mais dois ou três temas. Isto ainda não acabou! E assim foi.

Buzzcocks

Fotografia: Nuno Ávila

3.º dia

O terceiro dia deste primeiro Luna Fest arrancou com a atuação de The Phobics. Grupo londrino de Punk Rock com pitadas de Glam, típico e competente, plain & simple, aqueceu bem o pouco público que já estava recuperado da noite anterior e presente na Praça da Canção.

Seguiu-se The Star Spangles, banda de Nova Iorque formada em 1998 e que teve uma atuação também competente mas algo apagada, alinhada com uma sonoridade Glam Rock/Punk. Talvez a noite anterior lhes tenha deixado demasiada marca…

Conterrâneos do grupo anterior, The Fleshtones, dinossauros do Garage Rock, não deixaram os seus créditos por mãos alheias. Prestação irrepreensível, cheia de energia e humor, com o vocalista Peter Zaremba a referir-se interminavelmente ao tálento que pairava no ar (ninguém terá percebido muito bem a ideia, mas pouco interessa), em constante comunhão com o público, fazendo-o rodopiar, baixar e saltar, e terminando o concerto em apoteose, insolitamente, com uma saída pela frente do palco seguido por praticamente toda a banda, ao mesmo tempo que soltavam os últimos acordes e Zaremba num “portunhol” hilariante articulava boa noche!

The Fleshtones

Fotografia: Vânia Ferreira

Para continuar o frenesim e antes do cabeça de cartaz, duas bandas portuguesas confirmadas à última hora perante os cancelamentos conhecidos, Victor Torpedo & The Pop Kids logo seguida de The Parkinsons. Sem qualquer uma delas precisar de apresentações nesta cidade, o lastro de Victor Torpedo é inconfundível, e poucos como ele, um deles Ricardo Brito no órgão e bateria, teriam a genica de subir ao palco para dois concertos de seguida, independentemente do número de anos na estrada e de dias de festival. O resto não foi surpresa e ainda bem: entrega total, com muito salto e suor, enfim, dois concertos típicos de duas bandas que fazem sempre questão de “incendiar” o ambiente. A segunda, assumidamente reunida de improviso, sem ensaiar. Mas ensaiar o quê? A inesgotável espontaneidade de Afonso Pinto e Torpedo?

Coube ao projeto parisiense La Femme encerrar o dia de concertos. Mais uma banda com novíssimo álbum publicado em 2023, «Paris-Hawaï». Psych/Pop Punk hipnótico, sem direito a paragens, por um conjunto numeroso de músicos que visualmente mais parece um daqueles super-grupos vestidos a rigor pronto a animar qualquer festa. Indiscutivelmente, um dos pontos altos do festival.

La Femme

Fotografia: Nuno Ávila

4.º dia

O penúltimo dia abriu com a atuação do grupo 5.ª Punkada, momento sempre de grande carinho e regozijo. Haverá atitude DIY (faz tu mesmo) mais inspiradora do que música tocada por pessoas incapacitadas mental e motoramente? O projeto conimbricense continua a sua jornada de anos, iniciada no final do milénio passado, tendo atingido o ponto de gravar o LP «Somos Punks ou Não?» e ter uma agenda de concertos muito preenchida, inclusivamente com vários agendamentos no estrangeiro. Neste Luna Fest contaram com a participação em palco do anfitrião Victor Torpedo na guitarra elétrica e de Surma no órgão. “O céu é o limite”, e isso pode ser válido para todos, sem exceção. Haja vontade e condições.

5.ª Punkada

Fotografia: Tiago Jerónimo

Eel Men subiu de seguida ao palco num concerto que foi mais uma das grandes surpresas. Formado em 2021, o quarteto londrino de Garage/Pop Rock/Punk tem dois singles e um EP, e este terá sido apenas o primeiro concerto fora da sua grande ilha Britânica e num festival, mas nada disso se notou. Atuação muito consistente, eletrizante, acelerada, magnética para o pouco público presente a essa hora. Daquelas bandas que deixa tudo em palco e ninguém indiferente.

Eel Men

Fotografia: Nuno Ávila

Martin Dupont era uma das grandes atrações deste quarto dia. O grupo de Marselha, que entre 1984 e 88 gravou quatro LPs e vive a sua segunda encarnação desde 2022, com o novo álbum «Kintsugi» acabadinho de sair, deu aos presentes um banho de Synth Pop/Rock negro e melancólico para assentar um pouco a poeira, totalmente fiel às expectativas que os aguardavam.

A banda escocesa The Rezillos, outra veterana dos palcos inicialmente ativa entre 1976 e 78 e regressada em 2001, foi intérprete de um Rocka/Psycho-billy que parecia saído de um mundo paralelo científico-futurista, perfeitamente encaixado numa estética de filme B/Z claramente associada à sonoridade que praticam, sem surpresas e sem falhar na entrega e humor contagiante com que brindaram o público.

Em contra-ponto com o restante cartaz do festival, o projeto berlinense Dissidenten entrou em palco antes do cabeça de cartaz da noite. O conjunto ativo desde 1981 com cerca de quatro dezenas de discos publicados, deu ao festival uma vertente sonora marcada pela música tradicional de algumas paragens africanas e orientais, combinada com elementos de música eletrónica de dança. Um grupo eclético que soube relaxar a audiência e declarou oficial a dança do ventre.

A Certain Ratio, o histórico grupo britânico formado em 1977, também com novíssimo álbum intitulado «1982», fechou o dia com um dos melhores concertos dos cinco dias de festival. Disco, Rock, Funk, baixo pulsante cheio de groove… Em linha com a sonoridade da viragem da década de 1970 para 80, presente em compilações como «New York Noise». Toda a gente a precisar de um raio de um metro para se mexer em cerca de hora e meia memorável e absolutamente consensual, que pareceu passar em poucos minutos. Não ficou grão de terra no chão.

A Certain Ratio

Fotografia: Tiago Jerónimo

5.º dia

O quinto e último dia, exclusivamente britânico, deste primeiro Luna Fest começou com Bruno and the Outrageous Methods of Presentation, mais um dos concertos de abertura que deixaram um sorriso rasgado nos madrugadores destes cinco dias: crú e frenético, com o vocalista e guitarrista Bruno Wilkinson a sair do palco de frente para o público, em sprint para um qualquer sítio onde a loucura não terminasse. Uma excelente surpresa de um grupo obscuro que ainda só tem um punhado de lançamentos entre singles e EPs, por sinal bastante escondidos até no domínio digital.

Bruno and the Outrageous Methods of Presentation

Fotografia: Tiago Jerónimo

Seguiu-se a histórica banda britânica Ruts DC, mais uma com uma carreira iniciada na génese do Punk Rock inglês. Tocou pela primeira vez em solo nacional, combinando o Rock e o Reggae num som pesado, por vezes Punk, por vezes quase Metal. Heavy Reggae? Da velha guarda, surgida em 1980 no seguimento do grupo anterior Ruts e da morte do seu vocalista, estes ingleses já viram muito e se há coisa que os anima é o agitar e unir de consciências que dizem ser tão necessário como sempre, principalmente numa juventude que dizem adormecida para a política corrupta e para uma sociedade onde existe cada vez mais separação entre ricos e o resto. Uma atuação que no final contou com a participação surpresa de Captain Sensible de The Damned, duas bandas cujo companheirismo já vem da década de 1970.

Terceira em palco, The Yummy Fur é uma banda de Glasgow formada em 1992 mas que 99% dos presentes certamente desconhecia, tal como boa parte do cartaz. Bem referenciada pelo culto e certeiro palato do mítico John Peel, e autora de duas das mui famosas John Peel Sessions em meados e finais da década de 1990, trata-se de uma daquelas bandas sonoramente embrionárias de outras, pois por lá passaram futuros membros do grupo mais famigerado Franz Ferdinand ou mesmo The Country Teasers. Reunidos desde o seu primeiro término em 1999, com a compilação «Piggy Wings» datada de 2019, o seu Garage/Punk/Pop Rock acelerado deu boa continuidade à velocidade que já pairava no ar.

Antes do cabeça de cartaz outro grupo histórico: The Only Ones. Formado em Londres em 1976, em plena explosão Punk, tem a particularidade, também entre as bandas mais antigas que tocaram no Luna Fest, de ainda tocar na sua formação original. Reduziu a velocidade drasticamente, convocando os presentes para um som mais sunshine Pop mas com a aura misteriosa própria do Punk/Pop Rock desacelerado e negro do início da década de 1980.

Para o final ficou um dos grandes nomes do cartaz: Gang of Four. E que final. Sem precisar de grandes apresentações, agora com o ex-Slint David Pajo na guitarra, o histórico grupo britânico de Dance Punk formado em 1977, que mistura algo de Funk, Dub, dissonância e arritmia, deu tudo o que dele se esperava perante a maior audiência de todo o festival, no dia de entrada gratuita. Não faltaram os clássicos, a atitude, o político, o insólito. O tradicional micro-ondas partido a bastão de basebol. Um Jon King irrequieto, performativo. As mensagens políticas de igualdade e anti-pobreza. Tudo no seu devido lugar no que a um concerto de Gang of Four diz respeito. Um dos grandes concertos da banda em solo português, uma maneira irrepreensível de terminar o festival!

Gang of Four

Fotografia: Tiago Jerónimo

Chegado ao final o primeiro Luna Fest o balanço é extremamente positivo. Porque para quem dele usufruiu, foi um exemplo de excelente organização, com concertos no mínimo competentes e no máximo excelentes, condições muito boas para o público, desde a alimentação à higiene, com um excelente ambiente de grande camaradagem e alegria que se notou por todo o lado, do início ao fim. Uma prova clara disso foi o espectro etário coberto, havendo até crianças de carrinho que os pais tiveram todo o gosto e orgulho, arrisco eu, em levar. Claro, há por onde melhorar. O aspeto negativo mais visível terá sido uma adesão talvez aquém do que esperado e desejado. Não que se possa forçar a adesão de quem legitimamente não tem interesse, mas o cartaz atraí potencialmente mais público do que o presente. Não podemos ignorar uma oferta gigante de festivais por este país fora, à qual o público, seja de Coimbra ou não, não tem carteira ou tempo para aderir na medida em que gostaria.

No final de contas, uma pergunta em tom de desejo ficou claramente no ar: haverá segunda edição? Se tomarmos como referência a primeira, tem de haver! Com um apelo: um festival em Portugal tem de dar mais espaço às bandas portuguesas, especialmente as mais novas!

 

Fotografia de capa: Nuno Ávila

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