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Luca Argel: “Brasil, deixa contar a história que a História não conta.” – Crónica sobre o concerto do 36.º Aniversário da RUC

Passos. Corpos. Corpos que abrandam. Inclinam o olhar, distribuem-no, incidem-no em pontos do redor: – Aqui, uma cafetaria. Ali, um alfarrabista. Além, um pequeno artesanato. Corre o tempo. Vem a mão do Homem. Os corpos regressam. Incidem o olhar nos lugares que acreditam existir ainda, no entanto: – A cafetaria já não está. O alfarrabista […]

Passos. Corpos. Corpos que abrandam. Inclinam o olhar, distribuem-no, incidem-no em pontos do redor:

– Aqui, uma cafetaria. Ali, um alfarrabista. Além, um pequeno artesanato.

Corre o tempo. Vem a mão do Homem.

Os corpos regressam. Incidem o olhar nos lugares que acreditam existir ainda, no entanto:

– A cafetaria já não está. O alfarrabista é ruína. O artesanato é alojamento local.

Passos. Mãos. Palmas. Mais palmas. Mais passos. Mais Mãos. Voz. Mais vozes. Uma guitarra.

– O Homem faz Arte do que perde.

– Será pela Arte que o Homem se liberta do que perde?

Talvez o desvendemos na ode ao Samba de Luca Argel, apresentada no Teatro Académico de Gil Vicente no passado dia quatro de março, a propósito do 36.º Aniversário da Rádio Universidade de Coimbra. Ao violão, baixo e voz de Luca junta-se Carlos César Motta na bateria; Neném do Chalé nas percussões; Pri Azevedo no teclado e acordeão e César Ribeiro na guitarra.

 

«Todos estávamos de acordo, então, em considerar que há uma grande aventura a ser realizada. ‘Abandonem tudo […] Partam pelas ruas’: era o motivo das minhas exortações naquele período…Mas por quais ruas partir? Pelas ruas materiais era pouco provável; pelas ruas espirituais, nós mal as víamos. Restava o facto de nos ter vindo a ideia de combinarmos esses dois tipos de ruas.»
[André Breton, 1952; in Careri Francesco: Walkskapes: O Caminhar como Prática Estética]

O que nos resta numa cidade gentrificada? Numa cidade-alvo da mão do Homem que traz nela a força centrífuga capaz de empurrar para fora o que lhe bombeia o coração? De o despovoar, arrancar veios, destrinçar até não restar mais? Não pergunto o que resta à cidade, mas a nós: o que nos resta quando se somem as portas e as figuras que as abrem ou às janelas acenam, fazendo também nossas as ruas que pisamos? Quando os lugares se somem, vão com eles os elos que criamos? O que acontece a essa tal sensação construída de pertença, quiçá (oxalá) de segurança?

Caminhar é uma experiência do Eu. Uterina. Além – utilitária. Além – estética. Com o corpo se movem olhos que absorvem o belo, o modificado, o desigual. Olhos-eternos-flanêurs de Baudelaire, e depois de Walter Benjamin – errantes, vadios, caminhantes, observadores enamorados por aquilo em que caminham, conhecedores de ruas, do que elas emitem, falam, contam, escondem; provadores do jubilo da independência que vive no caminhar sem destino.

Se são as ruas responsáveis pela forma de ler um lugar e, com ele, um povo, o que se perde quando as portas se fecham, transformam? Evocando Breton, que mutações no Ser e no caminhar (espirituais) advêm das “materiais”? Algo há na música de Luca Argel que nos põe o pensamento nestas e noutras questões – nossas questões, e eis “Gentrificasamba”, a antepenúltima faixa do álbum “Samba Sem Fronteiras” (2018) a protagoniza-lo:

«Fechou o livreiro fechou a quintanda e o florista
A cidade vai virar só hotel para turista
Fechou a taberna a confeitaria e o alfarrabista».

Dir-se-á: Luca Argel é flanêur, espectador urbano, mas a lente quase etnográfica que usa leva-o para um lugar além-espectador: Luca mira as ruas, mas age e atua sobre o que mira, a menos que não seja pelo ato de transformar o que mira em Arte; em “Samba de Guerrilha”: “No Porto, é um fenómeno: as coisas vão desaparecendo do centro da cidade”, diz Luca. No entanto, continua, “o Samba já conhece a gentrificação há muito tempo, desde a Praça Onze – um dos berços do Samba. Um caldeirão cultural, mas que, na década 40, foi gentrificado. Dispersaram a população, que começou a ir para os subúrbios. O Samba foi junto, foi com elas. O Samba imortalizou este lugar que não existe mais: a ‘Praça Onze’”, diluído por força das reformas urbanas que visavam apagar fisicamente a presença negra do centro da cidade. É com este tema que entramos em “Samba de Guerrilha”, álbum lançado no ano passado. “A cidade civiliza-se. Foi este o slogan que justificou a derrubada de casas, a destruição de espaços de convivência e a expulsão de populações pobres e descendentes escravizados do centro do Rio de Janeiro”, ouve-se num dos momentos de narração que “Samba de Guerrilha” contempla.

Rua –  lugar de encontro apertado dessa coisa que é nossa e vive para ser desaguada: empatia, afeto, amor. Com a perda de ruas e praças se perde o que de essencial nelas se criou? Não:

Praça Onze –  símbolo de resistência ao binómio que separa as ruas espirituais das materiais; Praça Onze que vai com os corpos perseguidos.

Samba – rua espiritual que muda de morada, porque às ruas espirituais não chega nem picareta nem grua. Rua testemunha, semblante e instrumento de denúncia de uma lógica colonial que ainda rege relações sociais.

Há uma frase proferida por Beto Sem Braço que, para Luca, é a mais exímia descrição da essência do Samba. Perguntaram, certa vez, “como era possível que o Samba fosse uma música tão festiva e alegre, tendo nascido no seio de pessoas tão pobres, sofridas e perseguidas?”, ao que Beto Sem Braço responde: “o que espanta a miséria é a festa.” Afinal, diz-nos Luca, “não é apesar da miséria que fazes a festa. É por causa dela. O Samba vem abrir uma janela de felicidade por onde podes respirar. Se não, não vives”, palavras que principiam o tema “Ninguém Faz Festa”, oriundo de “Bandeira”, álbum de 2017.

Caminhar como experiência além-estética, mas que é também ato quotidiano, esse ritmo cadenciado de ações e pulsares que nos firmam os dias, lhes dão um sentido; quotidiano que é também lugar do extraordinário, do imprevisto – do que surge diante dos pés caminhantes, sem aviso, fissurando o ritmo, reinventando a cadência, gerando dinâmica, alterando o balanço, quiçá criando novos sentidos, maneiras de ler as ruas – tal como acontece quando as portas se modificam, as figuras do lado de lá são outras, e tal como se retrata em “Conversa da Fila”, álbum de 2019, bem como em “Acanalhado” (tema de “Bandeira”), onde o quotidiano ocupa um lugar central e as letras soam a páginas arrancadas de um possível diário de Luca.

As mutações das ruas, do caminhar, da máquina financeira que determina quando e onde sugar pequenos comércios para a ruína virar palácio de abrigo a tubarões inchados – eis algumas das contas de um mesmo fio político. É neste fio que caminha Luca e sobre ele que compõe, tal como ilustram alguns dos últimos temas apresentados no concerto: “Mãe Preta”, tema escrito em 1954 por Piratini (Antônio Amábile) e Caco Velho (Matheus Nunes), cuja brotoeja causada lhe valeu a censura em Portugal. Luca explica: “Mãe Preta foi mulher escravizada no Brasil, provavelmente numa fazenda de café. Uma mulher que não podia tomar conta da sua própria família porque tinha de tomar conta dos filhos dos senhores da fazenda.” Posteriormente, a melodia foi aproveitada por David Mourão-Ferreira e serviu de base a outro poema – “Barco Negro”, cantado por Amália Rodrigues. Depois do rescaldo do 25 de abril, o tema foi além-fronteiras ao cantá-la em Les Amants du Tagev (Amantes do Tejo), filme de 1955, escrito por Marcel Rivet e realizado por Henri Verneuil, mas só em 1978 é que Amália volta a pegar no poema original de “Mãe Preta”, regravando-o.

«Tava durumindo
Cangoma me chamou
Dizendo ‘acorda nego
Cativeiro já acabou’»

«O que é que faz o nego
Na fazenda do sinhô?
Sinhozinho mandou embora
Por que é que o nego voltou?»

Mais contas políticas? “Cangoma” e “Na Fazenda do Senhor”, cujos versos, elucida Luca, “foram cantados pela primeira vez no dia da abolição da escravatura no Brasil” e “contam a história de um negro que é acordado para ir para uma festa que estava a acontecer. Uma festa que celebrava a liberdade de pessoas que estiveram 40 anos em cativeiro, mas que poderiam então construir uma nova vida. No entanto, estas pessoas saíram da escravatura despojadas e sem acesso aos direitos mais básicos, sem garantias de nada, sem formação. Muitas delas acabaram por voltar a um dos retratos mais tristes que se viram nessa altura, no Brasil: voltaram para as fazendas, a pedir trabalho.”

«Samba
Negro, forte, destemido
Foi duramente perseguido
Na esquina, no botequim e no terreiro

Mudaram toda a sua estrutura
Lhe impuseram outra cultura
E você nem percebeu»

 

O rescaldo das contradições que acompanharam a abolição da escravatura deu-se dois anos depois, em 1890, com a instituição da “Lei da Vadiagem” que, conta-se em “Samba de Guerrilha”, “autorizava a polícia a prender, invadir e confiscar qualquer pessoa, espaço ou objeto relacionado com as culturas afro-brasileiras. O batuque era crime. Fosse ele uma roda de capoeira ou um ritual religioso. Fazer samba, ou simplesmente andar pela rua com um violão ou um pandeiro, era estar sujeito a levar uma surra da polícia. A ir para a cadeia e ter o seu instrumento quebrado” – escuta-se, antes do tema “Agoniza mas não Morre”.

«Brasil,
deixa contar a história que a História não conta»

Com a terceira conta política deste eterno fio se encerra o concerto de Luca Argel: a capella se canta e homenageia “um dos maiores heróis que a História tentou esquecer, mas não conseguiu – Almirante Negro, censurada pela ditadura militar.” Assim ficou conhecido João Cândido Felisberto (1880-1969), militar brasileiro da Marinha de Guerra do Brasil e líder da Revolta da Chibata – motim organizado pelos soldados da Marinha brasileira de 22 a 27 de novembro de 1910, brandando pelo fim das chibatadas, castigo físico na altura ainda praticado pela Marinha ao mínimo sintoma de resistência à ordem, e somente aos postos mais baixos da Marinha, ocupados por negros e mestiços, o que torna esta revolta, antes de mais, uma revolta contra a desigualdade social e racial na qual se alicerçou a exploração e a escravatura humanas.

Aos avessos da História; aos perigos derradeiros do enquadramento e triagem de acontecimentos que é base de aprendizagem; aos ocultos; ao palimpsesto revisionista que é o permanente reescrever do passado; à reciclagem dos podres e à prevalência dada a representações que contribuem para uma visada salubridade social. Aos cinzentos que subjazem às visões maniqueístas com que apreendemos o real.  A tudo isto nos chamou o concerto de Luca Argel, e que o fechar do pano não impediu de ressoar noite, tempo e pensamento afora.

Fotografia: André Jerónimo

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