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Se há Fogo Fogo, há mãos-acendalha-faúlha

Na passada quinta-feira, dia 11 de novembro, a Rádio Universidade de Coimbra deu fim às celebrações do seu 35º Aniversário com um concerto de Fogo Fogo. De Casa cheia, pouco depois das 21h30 fechavam-se as portas e descortinava-se o palco do Teatro Académico de Gil Vicente. Este concerto realizou-se no âmbito do III Ciclo de Música Orphika da Universidade de Coimbra e contou com o apoio da Embaixada da República de Cabo Verde em Portugal, CCCV – Centro Cultural de Cabo Verde, da Così e da República da Saudade.

Palmas: ato de unir e desunir as mãos, que pode seguir um ritmo dado – seguindo-o no tempo que o compassa, como natural sincronização, ou não – dando-se esse ato a contratempo.

Fogo: reação química provocada pela interseção de três elementos – oxigénio, combustível e calor.

Dir-se-ia:  pouco ou nada importa nas palmas se são a tempo ou a contratempo quando aquilo que as motiva é juntá-las ao fogo que as excita. O rumar ao encontro desse fogo. O participar nele. O ser parte dele. Comburente e combustível desse mesmo fogo conjunto, causa e consequência; acendalha e faúlha – em simultâneo.

O Fogo da noite de 11 aqueceu e fez faísca, e com ele a palmas que a ele cederam.

Há qualquer coisa de sublime nessa milenar e comum relação que se dá do encontro etéreo com o outro por via das mãos. Do que de espiritual resulta dele. A tempo ou a contratempo, descompassadas ou em sincronia, as palmas, dalgum modo, unificam. Comunicam coisas, transmitem-nas, propagam-nas – como faúlha solta no ar. Mãos-epítome da transmissão de afeto, afeto que é bafo quente e crepita, capaz de contaminar o discreto, de dominar o hesitante, o das mãos inertes, o cético ao aplauso, o que se queda na cadeira, mas que depressa se levanta e as levanta também, as suas mãos-epítome, adentrando nesse aplausismo, nessa combustão, nesse fogo que, entretanto, também em si se faz brasa; também em si se faz comum. Palmeando em função do batuque que soa em função da palma, numa interdependência rítmica.

E, por falar de união e de transmissão de afeto, soam os dois primeiros temas de Fogo Fogo e David Pessoa convida à invisibilidade dos bancos, pequena heresia que é legítima heresia, atendendo aos resíduos-mazelas de um tempo que ficou, e à necessidade de exorcizar o medo, a desconfiança e a contenção que esse tempo entranhou na psique, e que nesta noite se manifesta no levantar e sentar fugidio dos que aceitam o convite, mas pouco depois se arrependem. De pé, hereges persistentes atendem ao convite e é nos corredores que separam as alas da sala de espetáculo e rente ao palco que se reúnem para confirmar que “a música tem esse poder de aglutinar e juntar pessoas, sem que as mesmas percebam o que está a ser dito”, nas palavras de David Pessoa.  Epítome desse afeto? Pouco depois, um outro convite: abraçar a pessoa do lado.

Foi há cerca de sete anos, no palco da Casa Independente, em Lisboa, que Francisco Rebelo (baixo), João Gomes (teclas), Edu Mundo (bateria), Danilo Lopes (guitarra solo e voz) e David Pessoa (guitarra ritmo e voz) se tornaram Fogo Fogo. O início, feito de encontros mensais nos quais os cinco músicos iam recriando algumas das canções mais representativas do repertório cabo-verdiano, nomeadamente do Funaná, culminou no homónimo e primeiro EP – Fogo Fogo, em 2016. Pouco a pouco, e por influência dos grandes mestres elogiados e homenageados nesse primeiro EP, e outros, como Simentera, Bulimundo, Codê di Dona, Ferro Gaita, Tubarões, Sema Lopi e Mamo Pencha, lançaram-se na escrita de originais, dos quais nasceu, em 2019, o EP “Dia Não”.

De forma indissociável, o condão sociopolítico é presença assídua na feitura das letras e materializa-se na capa de Flado Fla, álbum lançado em setembro e apresentado agora ao público de Coimbra, volvidos quarenta minutos de concerto. Uma capa que, criada pelo artista plástico Vhils, é fonte de significação: a ladear Amílcar Cabral – líder do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e da inerente luta pela libertação, está Orlando Pantera, Tim Maia, Paulino Vieira, Zeca Afonso, José Mário Branco, entre outros. Em entrevista a Inês Nascimento, para o Observatório (emissão de 10 de novembro), Edu Mundo diz-nos que é uma capa “que diz coisas, que quer entrar. É uma síntese de uma data de trunfos, de influências, de referências, de vozes que falam mais alto e que nos direcionaram para um tipo de som”, mas… “não esquecer que não existem só vozes – existem palavras, pessoas que nos influenciaram ao longo da música pela palavra. Eu ouvia muita música em que a parte musical passou a ser secundária e o que o artista dizia é que me interessava. Esta capa pulsa sobre isso: a música e a palavra. Enquadra-se na visão de Fogo Fogo.”

Nas palavras de Danilo, “Amilcar Cabral representa o facto de o Funaná ter sido dado ao mundo. Representa a cristalização da identidade crioula. Antes da independência de cabo verde, o Funaná era uma música proibida – a manifestação da africanidade, da ‘crioulidade’, da cabovernianidade, era proibida. Com a independência, deixou de ser. Centrais são os que empreenderam a luta da independentização das ex-colónias. E temos também o Zeca Afonso e o José Mário Branco, coadjuvantes neste processo. Esta figura central fala mesmo de caras a identidade PALOP.”

Da miscigenação e do fervilhar multicultural que o Intendente representa e de que Lisboa é porto; da afirmação e da reinvenção do Funaná – reprimido e desprezado durante o colonialismo português. De tudo isto nos fala Flado Fla, construído por via de uma posição de “respeito e homenagem” para com a tradição musical caboverdiana, diz-nos Edu, acrescentando: “é muito interessante ir a um concerto de Fogo Fogo e ver pessoas que estão de costas para o palco – porque estão a dançar, e que não existe muita malta a publicar vídeos do concerto no Facebook, porque: primeiro, vão ser empurrados por alguém que está a dançar, e segundo, porque essa pessoa não vai estar a gravar, vai estar a dançar. Quisemos voltar a trazer baile, uma coisa muito africana, o que permite fazer uma certa transmissão de conhecimento ao passar os clássicos: entreabrir uma porta para que as pessoas possam conhecer música tradicional de Cabo-Verde, que a nós tocou e que pode tocar a muito mais gente. Para que as pessoas possam ir conhecendo Bulimundo, Codê di Dona, Mamo Pencha, todos esses incríveis que estão por aí em discos e em vinis, à espera que os ouçam.”

Desejo que move os Fogo Fogo durante um concerto? O de “provocar que as pessoas dancem à vontade, que façam aquilo que lhes der na gana, que sintam só a música, sem estarem preocupadas com quem está a olhar ou com o que o colega do lado pode estar a dizer. Já temos tantas restrições na nossa sociedade…”, no dizer de David. A atestar o eco desta vontade, quase perto das 23h30, em vez de se apagar o fogo, manda-se-lhe a acha que lhe dá o último lume: plateia a palco, fazendo-o palco nosso, dá-se a comunhão coletiva de individuais arbítrios, idealização romântica que oxalá transgredisse a dança – oxalá a dança alumiasse a política; oxalá a política não relevasse a dança. Num mundo em que por cada muro que se demole se erguem cem, resta-nos a liberdade do ritmo. Pelo menos essa.

Fotografia: André Jerónimo / RUC

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