[object Object]

10º BB Blues Fest, 24/09: Não comprem botas caras

Tail Dragger com José Luis Pardo & The Mojo Workers e Richard Ray Farrell & The Leisureman

Foi com um entusiasmo de quem não vê música ao vivo há quase dois anos que chegámos ao Baixa da Banheira Blues Fest. Ainda o recinto de concertos estava vazio e nós já queríamos entrar, conhecer o espaço e esperar em primeira fila pelos dois nomes da noite: Tail Dragger e Richard Ray Farrell.

A noite começou tímida, com o público a entrar aos poucos e a tentar encontrar a sua zona de conforto fora de portas, já que aos 10 anos de existência, o BB Blues Fest estreou-se na rua, em concertos fora do auditório. Primeiro estranha-se e depois entranha-se, diria o poeta. E assim foi: a organização em correrias de última hora, o público a habituar-se ao ambiente de festival na rua, tudo em tons de azul.

 

Tail Dragger: 80 anos de Blues e de ensinamentos para a vida

Quase a cumprir 81 voltas ao sol, Tail Dragger já tocou por quase todo o mundo, da Rússia ao Brasil, da Suécia a Espanha, mas faltava-lhe Portugal. A estreia em palcos nacionais deste grande vulto do Chicago Blues aconteceu acompanhado de José Luís Pardo & The Mojo Workers – e que estreia! Tail Dragger veio para “sing the Blues and drop some wisdom” (cantar Blues e deixar-nos ensinamentos para a vida).

Tail Dragger teve muitas profissões para pagar contas (foi mecânico automóvel, camionista, aprendeu com o avô a soldar, entre outros ofícios), mas o Blues sempre foi o seu hobby, desde que começou a ouvir às escondidas, no rádio a pilhas da família. A voz de trovão, aliada ao sentimento que coloca nas canções (as suas e as que pede emprestadas) levou-o até Howlin’ Wolf, que o acolheu como seu aprendiz, o levou consigo a palco e o confiou à banda que o acompanhava para ensinar as bases da construção musical. Lição número um: se queres aprender alguma coisa, tens que prestar atenção a como se faz. E Tail Dragger aprendeu ritmos e tempos, já que as rimas e as palavras lhe saem de cabeça: diz ele que nunca escreve as letras das suas músicas, basta olhar em volta para ver a vida a acontecer e a letra escreve-se a si mesma. Mesmo quando está em estúdio, o improviso é parte da sua forma de ser um bluesman de Chicago, confortável no lowdown.

Homem de poucas extravagâncias (não dispensa bom whisky, chapéus de qualidade e botas que façam muitos quilómetros), é apologista de trabalhar no duro, aproveitar a vida, mas com alguma parcimónia – lição número dois: “work hard, play hard, but save some money”.  Foi à conta de gastar o salário inteiro numas botas, enquanto miúdo, que a avó lhe deu uma sova e lhe ensinou a importância de poupar algum dinheiro. “Never been broke ever since!”, remata.

Em palco, apesar da idade, ainda precisa de se movimentar para sentir as pessoas, ver nos rostos do público as reações às suas reflexões de vida em forma de Blues. Confessa-nos que, ainda há dois anos, estar em concerto significava andar pelo meio do público, aproximar-se das pessoas. Nesta altura, lamenta não o poder fazer, tanto pelas pernas que já pedem descanso, como por toda a situação pandémica. Lição número três: não se riam de quem precisa sentar-se. Se continuarem a viver, mais cedo ou mais tarde, serão vocês a precisar de uma cadeira!

Tail Dragger apresentou-se com a banda vinda de Espanha (José Luís Pardo & The Mojo Workers), um conjunto de quatro músicos de excelência e com sangue azul, nas veias, na voz e no sentimento. Um concerto que acreditamos ficar na memória de quem assistiu, não só pela qualidade musical, mas também pelo carisma da banda e de Tail Dragger: uma lição de como podemos sempre evoluir e crescer naquilo a que nos dedicamos, desde que feito com a essência e entrega de quem não sabe o que a amanhã trará. Mesmo aos 80 anos e com uma cadeira sempre por perto. Uma cadeira, um cigarro e bom whisky, feeling the Blues.

 

Richard Ray Farrell: the Blues will never die, as the Blues are a way of life

Se pensávamos que o que tínhamos acabado de ver ia ficar na memória por muitos anos, não sabíamos ainda o que nos reservava Richard Ray Farrell & The Leisureman.

Sem tocar juntos há cerca de ano e meio, as ganas que tinham de estar em palco e ao vivo eram visíveis e sentidas por quem estava na audiência: publico sentado e ordenado, a bater o pé, mas a um passinho de se levantar e chegar à frente do palco para partilhar a absorver a energia eletrizante que se desprendia das guitarras, das harmónicas, do baixo e da bateria.

Sob a batuta de Richard Ray Farrell, os Leisureman (Troy Nahumko, e os irmãos Sergio e Pablo Barez) deram rédeas soltas ao talento e faziam o publico esquecer o frio que se começava a sentir na Avenida Marginal da Moita, com um Blues upbeat, a querer levantar-nos da cadeira.

A longa carreira de Richard Ray Farrell (cerca de 45 anos dedicados ao Blues) acontece maioritariamente na Europa: chegou nos anos 70 a Paris e só voltou aos EUA em 2001. Fez das ruas palco, e passou por pubs e bares, estações de metro, viveu com a comunidade cigana em Espanha, abriu em festivais para nomes maiores do Blues. Aprendeu com todas as experiências que teve, cresceu na sua mestria da guitarra (acústica e elétrica), da harmónica, e na tradução da essência que o compele a continuar este modo de vida, a aperfeiçoar-se, ainda que o caminho seja duro por vezes. Essa experiência sente-se na sua música, já que, para Richard Ray Farrell, o que vivemos, o que nos rodeia, as experiências que os nossos nos contam, são matéria de influência e inspiração. Tal como ele influenciou e inspirou a forma como a Europa ouve e sente o Blues.

Assim como Tail Dragger e muito outros bluesmen, Richard encara o que faz, o Blues, como uma forma de vida, uma ideologia (que não somos religiosos para lhe chamar fé). O que o move é a necessidade de traduzir o sentimento em notas musicais e de as partilhar, que é na partilha que o Blues cresce e ganha sentido. “Se quisesse ganhar muito dinheiro, seria médico, advogado, ou outra profissão, não era músico de Blues. O dinheiro é bom, mas o que faz seguir nesta vida é o sentimento, quase uma necessidade de extravasar o que se sente.” (as palavras podem não ser exatamente as que disse, mas o sentido é este: o verdadeiro Blues não tem por motivação ganhar dinheiro, mas sim, o impulso de deixar sair o que vai no peito).

Difícil eleger um momento perfeito, melhor ou mais interessante: Richard Ray Farrell & The Leisureman personificaram a vontade de continuar ali, a ouvir os seus talentos, até que o dia raiasse, ou o cansaço ganhasse, porque “Blues will never die, as the Blues are a way of life”.

Mais logo, há mais: é a vez de Rick Estrin & The Nightcats se estrearem no palco do BB Blues Fest e em território português, e a fechar a noite e os concertos da décima edição do festival, os Black Mamba, porque o que é nacional é muito bom!

 

Créditos das fotografias: António Calado – BBClic – Junta de Freguesia da Baixa da Banheira

Agradecimentos: Associação BB Blues Portugal e Câmara Municipal da Moita

PARTILHAR: