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20.04.2025POR Miguel Duarte

Tremor 2025: “Muita da ação do programa é imaginares o que gostarias que este lugar fosse”, António Pedro Lopes

O Festival Tremor voltou a São Miguel de 8 a 12 de abril, com concertos em lugares inusitados, pontos de escuta e conversação, projetos de residência, showcases, caminhadas. A RUC conversa com António Pedro Lopes, da direção artística, sobre as dinâmicas, coordenadas e fronteiras da música neste Tremor.

 

 

Este  trabalho de pensar os Açores para este festival há 12 anos, renovar sons e lugares, novas maneiras de reinventar tradições, envolver e ativar, envolve uma direção dividida geograficamente. Vês esta barreira física como um obstáculo?

Há só mundividências diferentes, umas que são de dentro e outras que são de fora. É o Saramago que diz “só se conhece a ilha saindo dela”, eu sou daqui, sou a única pessoa que nasceu e cresceu aqui, born and raised. Há um colega meu (Luís “Kitas” Banrezes) que chegou há doze anos atrás e sem nada a ver com a cultura decidiu que estava mais que na hora de seguir a sua paixão, montou um projeto de agenda cultural e uma produtora de eventos, que está na base disto, a Yuzin. E os outros dois (Márcio Laranjeira e Joaquim “Fua” Durães) vêm de uma produtora, a Lovers & Lollypops que tem por base a zona Norte, Porto, Barcelos, e depois há ainda a Marina Rei, curadora que está baseada no Porto. Não sinto que essa dispersão seja uma barreira, na verdade é uma possibilidade. O trabalho tem componentes diferentes: é importante estar presente, mas é importante manter um diálogo paralelo sobre a ação, uma camada de pensamento, uma redefinição do ethos no que fazemos. Claro que, em última instância, era bom estarmos mais próximos, mas a separação e o sentimento de acesso que cada um de nós tem, temos muitos interesses e circulamos em lugares diferentes e isso é visto como uma riqueza, é através dessa diversidade,  que achamos ser o caminho. Mais do que fazer uma lista dos nossos gostos, acreditamos nesse clash, de influências, sons, histórias, proveniências, géneros, substituia a palavra “barreira” por “trampolim”. O facto de nos encontrarmos nos lugares e termos encontros contínuos no mundo digital permite que isto tenha estas propriedades.

 

Voltas como programador do festival depois de uma pausa, que se inicia em 2020 com a candidatura de Ponta Delgada à Capital Europeia da Cultura. O hiato dura até esta edição, como é que esta mudança de perspetiva influenciou o regresso à direção artística do Tremor?

Para mim foi muito importante fazer o projeto de candidatura, que se tivesse gerado uma estratégia cultural para o município a dez anos, que se tivesse gerado um movimento entre ilhas e forças vivas de todos os Açores, mas foi um projeto bastante pesado para mim. Deixei de gostar de arte e música, e trabalhei para voltar a gostar, estudei em Coimbra e em Washington e redescobri o prazer de ser espectador, à procura de reencontrar a sensação que me ligava a este espaço que os festivais como este criam, os discursos que são propostos pelos artistas, mas também o sentido de vibração mais primal que a música tem. Eu estou normalmente na primeira fila porque é imersivo, não estou distraído com telenovelas de circunstância, e isso fez-me ter mais interesse em continuar curioso. Ao trabalhar a uma dimensão arquipelágica e ter uma noção muito clara de como as coisas funcionam a nível das políticas culturais (..), aprendi a valorizar a nossa independência, este festival foi feito por quatro pessoas que não se conheciam muito bem, mas perceberam que podiam arriscar, e com os anos foram desenvolvendo o que os unia numa história de afeto e amizade. E há uma precariedade, nenhum de nós vive de fazer isto, mas este é um lugar de ser-se independente, de muita potência e liberdade.

 

Somam-se agora os prémios de melhor festival de pequena dimensão e de melhor promoção turística, dos Iberian Festival Awards. A estratégia de promoção que existe num festival com este alcance internacional, foi um desenvolvimento exponencial? Destacas um ano de viragem neste crescimento?

Foi um trabalho progressivo, de tentativa-erro e intuição. De se pensar: nós temos uma história para contar e gostávamos de conta-la contigo, na plataforma que ocupas e na forma que tens de contar a história. Então, de uma maneira naive e caso a caso, “inspira-me a forma deste jornalista falar e de contar a história, vamos entrar em contacto”. Até depois estarmos num contexto onde a máquina turística se desenvolveu muito, inclusive na sua comunicação, e começamos a colaborar com a Associação de Turismo dos Açores, que tem um plano estratégico a pensar em quem quer chegar. Esta ideia de natureza viva, turismo da natureza, de uma natureza que tem cultura associada e que cria muitas possibilidades de experiências e vivências, sabores, contacto com a massa e legado humano que está aqui e cria esta cultura. Então houve um ponto em que não controlavas essas tentativas, o “boca-a-boca” e a experiência dos espetadores tornou-se uma máquina por si só, juntamente com os fiéis, os tremocinhos e tremocinhas (risos).

 

Este ano há também o regresso de conversas sobre projetos contínuos do Tremor, agora “Ponto de escuta” – Som Sim Zero, Filhos do Vento, Carcaça e Rádio Vaivém como reflexões em cima da mesa. Porque é que é importante falar neste registo informal sobre residências e momentos de apresentação do festival?

Vejo-as mais como um espaço de partilha. Quase todos os projetos que estiveram em conversa são de participação, em algum momento alguém é convidado a entrar e participar. Mas também têm uma dimensão humana às vezes larga, têm muitas experiências diferentes dentro da sua arquitetura. Quando olhámos para a edição deste ano percebemos que estes projetos de comunidade e travessia de processo criativo conjunto  tinham uma proeminência, não eram só os dois casos que existiam há mais anos (Som Sim Zero e Escola de Música de Rabo de Peixe), havia mais. Nunca tínhamos na nossa história criado esse espaço de partilha, que é também de reflexão, diferente de uma sala de ensaio ou de um lugar de espetáculo. E esses projetos sempre geraram muita curiosidade, mesmo o projeto de hip-hop, “quem são,  eles falam do quê, ouvem o quê?”. Vem daí, e de uma sensação de falta de “terceiros lugares”. Um lugar de encontro e conversa onde não estejamos necessariamente a consumir, onde seja possível trocar as voltas à forma como conversamos. Se olharmos em relação à cidade: que espaço é verdadeiramente público? Em que espaço podemos estar juntos e trocar ideias, praticar democracia e fazer alguma coisa por ela? Não há muitos. O Pesqueiro, a biblioteca, uns jardins… a cultura precisa destes lugares, podes ter uma relação de proximidade, podes ir ler ou inspirar-te porque alguém referencia alguma coisa e aporta-te qualquer coisa do Mundo. Para nós é muito importante haver uma cultura de conversa, de troca. Quando se fala de participação e trabalho com comunidades com alguma desvantagem social ou obstáculo económico, é bom saber que condições são essas. Como é que se criam os projetos, que processos criativos desbloqueiam essas questões sensíveis, e encontros com pessoas muito diferentes que não combinariam? Serve como um laboratório. Muita da ação do programa é imaginares o que gostarias que este lugar fosse. Não precisa de ter tantos concertos, mas tem a ver com o sentido de veres o potencial de um lugar e que as comunidades que o habitam têm, e sentires-te responsável em que ele se faça cumprir. Acho que para isso acontecer e haver um plano de ação, tem que haver um plano de conversação: é aí que chegamos a compromissos, entendemos os nossos limites e o que nos liga.

 

Ao longo desta edição, assistimos a concertos de curta ou longa duração, que servem os seus lugares e razões para acontecerem, isto é um fator a ter em conta quando programam as diferentes salas de Ponta Delgada, as localizações do “Tremor na Estufa”, os trilhos  “Todo o Terreno”?

Há um cuidado com o espaço e artista, às vezes falhamos. Não é tão óbvio, temos um histórico de experiências com os espaços e sabemos o que funciona, se pensarmos em estilo musical, relação palco-plateia, mas também nos interessam lógicas de desconforto, porque isto está vivo e não tem uma fórmula fechada, na verdade está sempre a tentar pregar uma rasteira.  Pensando  como é que isso cria conforto para quem frui, nós sabemos que é desafiante a viagem pela ilha, o jogo de surpresa constante, o carrossel de “agora estou na água”, “agora estou na montanha”, “agora está vento”, “agora é rock”, “agora é techno” é assoberbante, e às vezes emocionalmente exigente, e generoso também. Pode também provocar  uma espécie de desorientação. O nosso interesse está nessa pesquisa, na coreografia, no desenho de experiência, estratégias de choque e sobreposição, e quem tem muito a ver com esse compromisso com a diversidade. Ontem, com o concerto do Romeu Bairos no Coliseu Micaelense, foi demasiado e muito carregado de emoção, precisava de mais um quilómetro. Isto aqui é um delírio coletivo. Não é sobre ter medo de perder o que quer que seja, mas sobre poder escolher e alegremente perder e estar presente. O programa é em demasia, muito menos do que alguma vez foi, mas continua a sê-lo por questões de lotações, nós convidamos a este descontrolo.

 

Foste descrito como sendo o programador que pescava “o peixe mais difícil de vender” , qual foi o desta edição?

O “peixe mais difícil de vender” foi o Oko Ebombo. Não levo esse prémio, depende dos encontros que vamos tendo e relações com os artistas. Descobrimos o Oko Ebombo através do Kitas, que num domingo à noite manda-nos um vídeo por Whatsapp a dizer “este”, que gerou uma reação em cascata, “sim”, “sim”, “sim”. É um artista muito específico, que já viveu e tocou na rua, já teve o David Bowie a passar por ele num metro em Nova Iorque e a dizer “tu és a maior sombra que eu já vi na minha vida”, é quase uma figura que não existe, um pouco como Joseph Keckler, um cantor de ópera e standup comedian, que parece que está noutra esfera. Ou a Keeley Forsyth, que está num plano de construção de figura e discurso artístico, da dimensão de um corpo e imaginário, tivemos artistas super fortes nesse sentido e isso traz aportes importantes para a dimensão performativa do que fazem. Quando vês um concerto, é um universo que se apresenta à tua frente, e isso tem que ver com a minha presença mas também com a do Joaquim (Durães), a dimensão da performance e plástica, de como a música não tem uma fronteira muito bem definida nem etiqueta. No tremor, é uma área de pesquisa, os artistas que estão nessas fronteiras intra e transdisciplinares.

 

Porque é que o Tremor precisa da ilha ou porque é que a ilha precisa do Tremor? O que se cumpre aqui?

O Tremor faz parte desta ilha e precisa dela. A ilha precisa do tremor por dinâmicas culturais, sociais, económicas, de manter e injetar vida num ecossistema cultural, turístico, etc.. Mas o Tremor precisa da ilha porque é o seu palco, a sua musa, o seu lugar de inspiração, é o nosso set para filmar e criar experiências, situações e imaginar o que é isto de estarmos juntos à volta da música que diz sobre o Mundo, e que ativa o Mundo que está aqui, as pessoas que estão aqui. Mesmo criando relações com outros espaços, há sempre a relação com essa gente.



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